Pandemia
Quando vivíamos como caçadores-coletores, em tribos familiares pequenas e em deslocamento constante, uma doença poderia exterminar toda uma tribo. Mas dificilmente estenderia sua rede de contágio, já que o contato com outras tribos era menos frequente.
Entre 20.000 e 12.000 anos atrás, começava a Revolução Agrícola, que combinou a domesticação de plantas e animais. A manutenção das criações exigiu a permanência, vigilância e manutenção, mas permitiram, por outro lado, a produção de mais comida. E assim, as tribos familiares aumentaram – aumentando também a rede de contágio das doenças infecciosas.
Além disso, a convivência cotidiana com os animais domesticados aumentou a possibilidade de que os agentes infecciosos, a partir de eventuais mutações, pudessem contaminar outras espécies – se hoje você acha normal conviver com gatos e cães dentro de casa, em algumas regiões, principalmente onde o inverno é mais rigoroso, era normal trazer para dentro de casa porcos, bodes e carneiros.
Este é o cenário onde surgem as epidemias, termo usado para designar uma doença que se espalha por uma região e acomete uma parcela significativa da população: o Brasil vive, há muito tempo, uma epidemia de dengue. Também experimentamos, anualmente, epidemias de gripe e outras doenças respiratórias, principalmente nos meses mais frios e secos do ano.
Porém, quando uma doença começa a provocar surtos em outros países, recebe a denominação pandemia. Pan significa “todos” (como em Jogos Pan Americanos). Já demia, vem de demos, que significa “povo” (como em democracia). Assim pandemia significa “todos os povos”. Quer dizer exatamente isso: agora é problema de todo mundo.
Hoje vivemos em cidades cada vez maiores e mais populosas. São milhões de pessoas compartilhando espaços apertados, o mesmo ar, a mesma água e o mesmo esgoto. Um espirro no metrô de São Paulo pode contaminar – nos minutos em que as partículas de saliva e muco contendo cópias do vírus permanecem no ar – dezenas ou centenas de pessoas.
Também podemos, em poucas horas, atravessar um continente, e trazer escondida (além do eletrônico que você não quis declarar) uma variedade nova de um vírus do interior da China.
A China não é uma exceção, mas até recentemente apresentou certas condições que aumentam as chances de que variedades virais saltem entre espécies. Isso aconteceu, por exemplo, com as infecções respiratórias que se originaram em camelos e acometeram os tratadores no Oriente Médio. Mas na China a convivência amontoada de espécies vivas para abate e consumo imediato nos wet markets funciona como um caldeirão onde as mutações virais são constantemente selecionadas pelo sistema imunológico dos hospedeiros, e surgem doenças infecciosas particularmente preocupantes como a gripe aviária e o covid-19.
Mas qualquer doença pode se tornar uma pandemia?
Não. Vírus são os agentes infecciosos com maior potencial para pandemia.
Doenças causadas por bactérias podem ser tratadas com antibióticos – que não combatem doenças virais. E dentro do universo de vírus que causam doenças humanas, aqueles com altas taxas de mutação são mais preocupantes porque podem superar, em poucas gerações, tratamentos tidos como eficientes – como é o caso do HIV e dos coquetéis antivirais.
Muitos vírus dependem de meios de dispersão e contágio que poderiam, em tese, ser controlados – como a febre amarela foi controlada no Brasil em 1942, quando as campanhas nacionais conseguiram reduzir significativamente as populações de mosquito transmissor. Também é o caso do sarampo, que até 2017 registrava uma quantidade insignificante de casos no Brasil, atestando o sucesso das campanhas de vacinação1. Então, além de altas taxas de mutação, o vírus precisa de uma forma de dispersão difícil de controlar: pelas vias aéreas, por exemplo, como os vírus das linhagens influenza (causador da gripe), rino (causador do resfriado) e corona (covid-19).
O vírus em questão não pode ser muito letal. Um vírus que provoque sintomas extremos ou morte rápida, seria rapidamente reconhecido ou mataria o hospedeiro antes que este pudesse contaminar outras pessoas – como o Ebola. O período de incubação do vírus e o momento em que surgem os primeiros sintomas também são importantes, porque se os primeiros sintomas aparecem no momento em que o hospedeiro começa a contaminar outras pessoas, ele poderá ser contido e tratado antes de espalhar muito a infecção, como foi o caso da SARS. Ao contrário, uma pessoa contaminada com covid-19 pode contaminar outras por muitos dias antes do surgimento dos primeiros sintomas.
Em resumo, doenças infecciosas virais menos drásticas são as que apresentam maior chance se tornarem pandemias. O grande número de óbitos, mesmo à luz da (relativa) baixa fatalidade, se dá devido ao grande número de pessoas contaminadas.
E como evitar uma pandemia?
A comunidade científica internacional trabalha para descobrir e acompanhar ameaças à saúde pública, incluindo as variedades virais que podem se transformar em pandemias. A OMS (Organização Mundial da Saúde), juntos com centros de pesquisa, dentro (principalmente dentro) e fora das universidades investem muito dinheiro e esforço humano em pesquisas para detecção e elaboração de modelos preditivos de dispersão de doenças virais.
São estes grupos que investigam as cidades e os campos em busca de ameaças. Cabe a eles também propor medidas de contenção e tratamento, além de alertar as autoridades quando há a suspeita de uma epidemia.
Porém, sem recursos humanos é impossível coletar amostras pelo mundo todo – nem mesmo nos hotspots, lugares com maior propensão ao surgimento dessas variedades virais. Sem recursos financeiros é impossível testar todas as amostras, incluindo o sequenciamento gênico das antigas e novas variedades virais, e desenvolver tratamentos. E sem reconhecimento popular e político, os alertas não são levados à sério, e as medidas criadas para diminuir o risco de contaminação são tomadas tarde demais.
Talvez não seja possível evitar uma pandemia. Mas somente a Ciência – e incluo aqui a Biologia e a Medicina, mas também a Estatística, a Psicologia, as Ciências Econômicas, as Ciências Sociais e Políticas, a Arquitetura e o Urbanismo, entre dezenas de outras – estimulada, financiada e levada à sério é capaz de fornecer as ferramentas que precisamos para enfrentar essas eventualidades, de forma humana e responsável, preservando o máximo possível de pessoas.